O Racha
Hoje pela manhã, eu participei de um racha.
Eu
sei que é errado, podem me crucificar, eu faria o mesmo até essa manhã, mas
quem aqui nunca topou um desafio, por mais insano que ele pudesse parecer? Foi
inevitável, era impossível amarelar. O orgulho masculino é capaz das maiores
idiotices, podem acreditar.
Vou contar como foi que tudo aconteceu. Eram
sete horas e estava frio, frio como em todas as manhãs no principio de maio. Voltando
para casa depois de mais uma madrugada de trabalho, eu estava exausto. Já não
era dono de meus reflexos, meu corpo estava no piloto automático. Programado
para sair do trabalho e ir até minha cama com escalas mínimas. Nada me fazia
sair dessa programação. Percorria esse trajeto com o cérebro, digamos assim, em
stand by, quase "desligado". Pois bem, como eu ia dizendo, voltava para casa e quando saltei no
ponto de ônibus foi que tudo começou. Sim, o Racha. Logo atrás de mim desceu um
negro de baixa estatura, pequeno. No Rio Grande do Sul a gente chama de
Negãozinho. E era um Negãozinho daqueles baixinhos e fortes, com pinta de
capoeirista. Ele foi meu desafiante no primeiro racha da minha vida. Naquela
manhã fria de maio, eu cansado e com o cérebro preguiçosamente reativando para
fazer os últimos 1000 passos até minha cama, acabei entrando na pilha e
participando de algo que eu sempre repudiei. E em tais circunstâncias formou-se
a carrera. Um racha a pé. De um lado do “grid” estava eu. Com pernas longas e
muita preguiça. Com tênis em condições, mas com o peso de uma madrugada
cansativa sobre os ombros. Do outro lado estava ele. O Negro baixo com roupa de
pedreiro. Como é uma roupa de pedreiro? Ora, eu também não sei, mas a dele
tinha cimento ressecado. Só podia ser pedreiro. Nos pés ele calçava umas
sandálias Havaianas, não lembro a cor, mas também não é importante. O
importante é que nenhum dos dois estava disposto a ficar para trás naquela
manhã. Descemos por portas diferentes do ônibus, ele na do meio e eu na do
fundo. Ele saiu na frente no precário caminho da vereda por onde os pedestres
caminham quando descem do ônibus aqui no meu bairro. Nessa parada não há
calçada, e nem pelos próximos vinte ou trinta metros. O que existe é uma
trilhazinha entre o capim baixo na beirada da avenida. Ali, nesses vinte ou
trinta metros da trilha do capim, houve o primeiro contato, era o destino.
Eu só queria chegar rápido em casa, eu juro. Mas
ele estava no meu caminho e com um passo mais devagar que o meu, ele não tinha
pressa. Tenho inveja de quem consegue caminhar despreocupadamente como se não
houvesse nada para fazer. Mas às sete horas não existe pessoa caminhando
daquele jeito. Eu não aguentei, no primeiro ponto onde o capim dava uma brecha
e a trilha ficava um pouco mais larga, ultrapassei pela direita e segui
caminhando no meu ritmo acelerado de quem quer a própria cama e seus
cobertores. Por, talvez, dez segundos me esqueci do rapaz. Não devem ter sido
mais que breves dez segundos. Logo após dobrar na esquina e entrar em uma rua
mais tranquila, dei conta de uma presença ao meu lado direito, dei uma olhada
de rabo de olho e era ele. O Negãozinho com roupa de pedreiro e pinta de
capoeirista! Vinha como uma bala de canhão e me ultrapassou sem tomar
conhecimento do meu passo apressado. Não sei por que eu resolvi revidar,
acelerei o passo e busquei passar por ele para caminhar na sua frente,
protegido do trânsito no acostamento. Mas e quem disse que ele “venderia” fácil
a posição? Faltava combinar com o cara! Eu acelerando o passo e ele também. Não
era possível tomar-lhe a frente, quando muito abrir uma pequena vantagem que
não me dava permissão para tomar posição no acostamento. Só se fosse atrás
dele, mas eu não entendo porque essa hipótese não passou pela minha cabeça em
nenhum momento. Minha segurança já não era importante, eu queria chegar à
frente dele onde quer que ele fosse naquela manhã. Eu continuava acelerando e
ele também. Na manhã fria de maio o único som naquela rua era produzido pelos
chinelos do Mini Usain Bolt do Norte da Ilha. Já estava ficando cômica a
situação. Ele estava fazendo um esforço desgraçado para andar mais rápido que
eu. Por outro lado, eu também não estava fazendo pouco esforço. O cara era
veloz. A velocidade que caminhávamos, a força que estávamos fazendo, pesavam o
clima naquela rua. Eu já estava no limite e faltava mais uma curva e uma
pequena reta de uns trezentos passos até a próxima construção e uns
quatrocentos até minha casa. Era necessário “dar um gás”, acionar o turbo. Nesse
momento comecei a perceber a situação e caiu a ficha de como aquilo era
surreal. Eu tentava, mas meu rosto não parava de exibir um sorrisinho teimoso
no cantinho da boca e na expressão dos olhos. Se ele visse a minha fisionomia,
acho que parava de caminhar e começava a correr achando que estava ao lado de
algum louco. Eu não conseguia controlar a vontade de rir da situação em que se
encontravam dois homens. Homem nunca cresce, nunca. Para sempre são meninos
brigões e competitivos. Me desconcentrei por um momento na hora de dobrar para
minha rua e ele me passou e abriu vantagem já na reta final do desafio. Caramba,
como ele caminhava rápido. Eu já não tinha muito para dar. Já estava no limite
entre uma caminhada rápida e a marcha atlética. E eu não queria rebolar como a
galera desse esporte. Só queria chegar primeiro em qualquer lugar e ir dormir
como um verdadeiro vitorioso.
Na minha rua, ele que já tinha a vantagem da
distância, ganhou mais um elemento a seu favor, o barro e as poças de água das
últimas chuvas de abril. Ele por estar de bermuda e chinelo passava voando por
todas, sem se importar se ia molhar ou embarrar os pés. Eu estava de tênis e
calça jeans. Era obrigado a desviar, pular, parar, pensar onde pisar, o chão
parecia sabão. Eu estava vendo a vitória escapar, vendo-a caminhar saltitante
ao lado do Negãozinho foda.
Eu já estava desistindo, faltava pouco, eu já
tinha certeza de que ele entraria na próxima construção. No meu cérebro, que
voltava a trabalhar com o giro baixo, duas ideias se revezavam para me
conformar. Uma dizia:
- Pronto acabou, você perdeu para um baixinho
ligeiro, mas fez um bom papel. Vai ver ele já foi até atleta ou lateral de
algum time varzeano de futebol.
A outra dizia:
- Não fica triste, cara. Esse racha foi coisa
só da sua cabeça, ele nem se ligou no que estava acontecendo. Vai ver ele só
queria chegar rápido ao trabalho. Cara, você não perdeu. Não houve disputa
alguma. E essa viajada é porque você está com sono, só isso.
Confesso que a segunda estava me convencendo,
foi então que o DESGRAÇADO virou para me olhar e deu um sorrisinho triunfante. SIM,
AQUILO HAVIA SIDO UM RACHA! E ele já estava, com aquele sorrisinho filho da
puta, proclamando-se o vitorioso da peleja. Recebi uma dose extra de
adrenalina. Eu não me entregaria nem que faltasse um metro para ele. Senti meu
sangue ferver, meus músculos sendo reativados em um segundo. Cerrei os dentes e
voltei para a disputa. Voltei enlouquecido, como um tanque de guerra. Não havia
mais barro ou água que me importassem. Sabão em pó não lava meu orgulho, mas
limpa minhas calças e calçados. Como a perfeita Fênix, eu voltei e ele viu em
meus olhos a mudança no meu ânimo. Eu li nos olhos dele o pavor que sentia pelo
o que eu me transformei naquele instante. Ele voltou a olhar para frente. A
vitória, que corria ao lado dele, agora parecia querer esperar pelo vencedor na
linha de chegada. Sentiu-se desamparado, suas pernas velozes permaneciam
velozes, porém, agora trêmulas. Seus pés começaram a escorregar nas Havaianas
úmidas e embarradas. Ele patinou e eu cresci na briga. A distância diminuiu e
eu me liberei para sorrir. Caminhava rápido e sorria. Sorria e minha respiração
de locomotiva espalhava o vapor de meus pulmões. Ele caminhava, mas agora se
via em um filme de terror. Em uma das cenas em que o assassino persegue sua
vitima e não importa o quanto essa corra, o bandido sempre alcança. Imagino que
dever ter sido bastante assustador me ver às sete horas da manhã caminhando
feito um louco em sua direção, pisando em poças d’água, chutando barro e
sorrindo.
Em alguns instantes eu já estava colado nele, foi uma reação
espetacular. Nos últimos metros eu encostei ao lado dele. Seguíamos embalados e
abri sutil vantagem, mais alguns passos embarrados, e ele entrou na construção.
EU VENCI!!!
Venci o racha a pé contra o negro mais rápido
de todo o norte da ilha. Antes que ele entrasse na construção, eu dei uma
olhada para ele e sorri. Ele retribuiu com um sorriso amarelo de derrotado.
Caminhei mais alguns passos em velocidade normal e entrei em casa. Todo
sujo, fui direto para o banho. Coloquei a roupa de molho e nem me importava com
a sujeira em que ela se encontrava. Era a vestimenta de alguém que lutou pela
vitória. Um copo de leite e já era hora da tão amada cama e dos não menos
desejados cobertores amigos. Colocar a cabeça no travesseiro, relaxar os
músculos e não pensar em mais nada. Meu momento off-line, como todos os dias.
Só que eu não conseguia dormir, não podia desligar o cérebro. Sim é estranho,
mas eu estava ansioso para conceder uma revanche ao meu oponente por ocasião.
Será que amanhã ele trabalha? Amanhã não vou
de jeans.