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AQUI EU DEIXO MINHA MENTE VOAR,IMAGINO E RELEMBRO SITUAÇÕES,ME PERCO ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO.

ESPERO QUE DE ALGUMA FORMA ESSAS MALUQUICES TE AGRADEM.


segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A disputa


A disputa

   Gurizada agitada na tarde de sábado. Correm para um lado, correm para o outro.
   Dia de festinha!
   Aniversário do Orelha. Graaaande Orelha, o amigo divertido da galera. Essa festa, com certeza, tinha tudo para “bombar”. Para o Orelha era a satisfação de ver sua festa lotada, confirmara a sua popularidade. Para a gurizada parceira do Orelha era a chance de tentar dar uns beijinhos naquela paquera da escola ou do bairro.
   Para esses “eventos”, o planejamento começava em torno de uma semana antes da festa. Iniciava pela lista de convidados, passava pela eleição do responsável por gravar as fitas K7 que seriam usadas pelo DJ, pela prospecção das lonas que serviam para armar uma tenda legal e por último, aí sim, pensavam em que estratégia usar para convencer os pais a deixarem fazer uma festa em casa.
   Passada a fase de planejamento, era a hora de colocar em prática. A gurizada mais chegada aparecia cedo na casa do dono da festa. Era hora de arrumar o pátio, dar uma gabaritada no local do evento. Um verdadeiro mutirão se formava para preparar tudo nos mínimos detalhes. Geralmente as atenções giravam em torno da mesa de som, que era composta por dois aparelhos de som 3 em 1, com o máximo de caixas de som que a galera conseguisse arranjar. A seleção musical era feita de acordo com os interesses dos mais chegados. Todos tinham sua fita K7 com o seu playlist ou algum LP afú. A iluminação era um ponto importante na organização das festas, mas também era bem simples de resolver. Uma luz negra ou algumas lâmpadas incandescentes pintadas com têmpera já eram suficientes. Nas festas da nossa galera, invariavelmente havia uma tenda feita de lona preta ou amarela. Na verdade a tenda era a primeira coisa que ficava pronta. O resto se organizava baseado no resultado da montagem dessa cobertura. Depois dos últimos acertos a gurizada corre para casa. Hora de tomar um banhão, colocar a roupa planejada e poupada a semana inteira para essa noite, dar aquela caprichada no cabelo e roubar umas gotas de perfume do irmão mais velho ou do pai.
   Até esse momento todos são iguais.
   Mas chegando à festa, as personalidades começavam o seu baile característico. Meninos e meninas na sua grande maioria com a mesma idade disputando suas primeiras batalhas por espaço nesse mundo competitivo do convívio social. Todos os tipos de futuros adultos sendo moldados em um ambiente de aparências e desejos conflitantes.
   Uma festa dessas é rica em histórias. Para cada metro quadrado há um universo em expansão.
   Mas hoje vou focar em apenas um menino, em uma única história. Vou lhes contar a história do Régis, ou Tatu como a gurizada o chamava. O apelido de Tatu quem deu para o Régis foi seu tio, Reginaldo. Ele dizia que o menino era arisco como um tatuzinho desde pequeno. Corria para se esconder de tão tímido que era.
   Tinha problemas para relacionar-se com as pessoas. Com os amigos de sempre era mais fácil. Mas novas amizades eram raras. "Trovar" alguma guria então, nem pensar.
   Mas para essa ocasião ele já havia se garantido. Combinou com uma menina da escola para eles ficarem na festa. Para falar a verdade, foi ela quem combinou com ele. Mas não importava. O que importava é que ele não ia ficar sozinho. Já havia alardeado para os amigos que nessa festa ele ia “chegar” em alguma das gurias. Acabar com a fama de bichinho do mato que tinha entre as meninas e de cagão entre os meninos.
   Dessa vez não tinha muito o que pensar. Seria natural, a guria estaria lá e eles ficariam como quem cumpre um contrato. Sem a necessidade de se expor ao risco de ouvir um “não" impiedoso de alguma pré-adolescente cruel. Naquela época, treze anos era uma idade muito mais difícil de viver. Tudo tinha que ser bem alinhavado. Não havia facilidade de comunicação. A gente ia para as festas torcendo que tudo desse certo, que a guriazinha pretendida, com combinação ou não, realmente aparecesse. Um "plano B" era complicado de arquitetar. Tu tinha que ter uma carta na manga, mas uma carta moderada. Não podia deixar nenhuma das duas perceber qual delas era o prêmio de consolação. Mas esse não era o caso do Tatu. Se para ele alinhavar um encontro com uma já era um desafio. Um plano B era utopia. Tudo tinha que correr bem.
   Enquanto banhava-se, Tatu lamentava ter dito que não saia dessa festa sem “pegar” alguém. Mas o orgulho do tímido também é perigoso. Todos amigos fazendo mil planos, ele tinha que participar do assunto. Ele tinha que fazer o seu alarde. Sentia-se seguro para "gargantear".

   Enxaguando o creme rinse do cabelo ele deve ter pensado:

   - Calma Tatuzinho. Ta tudo arrumado. É só correr para o abraço.

   Saiu voando do banho, desodorante cheiroso, roupinha bacana, optou pela camisa de botão de um time de basquete americano, calça jeans branca e freedom fog preto. Uma beliscada na janta da coroa, escovar os dentes, muito gel no cabelo, sentar no sofá e esperar a gurizada passar chamando para ir pra festa. Gostavam de chegar em bando. Era bonito de ver toda a galera junta.

   Não demorou muito para Tatu escutar a gurizada chamando. Correu para o espelho deu mais uma arrumadinha no cabelo e voou para a rua. Já no portão começo a apalpar os bolsos. Voltou correndo para dentro de casa. Saiu 10 segundos depois com uma embalagem de Halls sabor Uva Verde. Halls era fundamental.
   Caminharam até a casa do Orelha fazendo algazarra, tirando sarro uns com os outros, mas entraram na festa de maneira comportada, estudando o ambiente, descobrindo quem já estava presente.
   Sem dúvidas os olhos mais ansiosos pertenciam a Tatu. Olhos que se movimentavam rápido a procura da guria. Onde estaria?Será vinha? Resolveu dar uma desfilada. Ela não estava.
   Enquanto isso os guris ficavam ao redor do “DJ”. Era um ótimo lugar para esconder o garrafão de vinho e ir coordenando a hora de soltar as “lentas” e quais seriam essas músicas lentas.
   Os meninos fazendo “passinhos” na frente das caixas de som, exibindo-se para as gurias que por sua vez faziam cara de “nem te ligo” e mexiam no cabelo. Todo mundo sabe que elas ligavam, que elas apreciavam meninos que dançavam. Elas queriam se mostrar pra eles também. Mas nem todas tinham coragem de se soltar. O jogo nos anos noventa era assim. Era mais nas entrelinhas. Um jogo de cena dirigido pelos hormônios, medos e curiosidades incontroláveis. Mas era também a última infância romântica que se teria noticia. Não sei explicar, era diferente.
   A festa começando a se desenvolver e os guris tomando vinho escondido. Tatu não podia controlar o nervosismo. A guria estava demorando. Os copos de vinho iam esvaziando e nada dela chegar.
   Tatu estava ficando tenso. Os amigos já começavam a se adiantar e ele de mãos amarradas. Ia para frente da casa espiar para um lado e para o outro constantemente. Em uma dessa idas até o portão viu que se aproximavam umas meninas que sempre estavam com ela. Esperou elas começarem a entrar e perguntou para a última da fila:

   - Oi, Daniela, a Viviane não vem?

   A resposta foi o balde de água fria que ele tanto temia:

   - Não. A mãe dela não liberou a Vivi porque ela não quis trazer o irmão dela junto. Tchau, deixa eu entrar.

   Tatu ficou parado, atônito. Virou e por alguns instantes olhou para todos na festa. Desespero.

   - E agora? – pensou enquanto a sobrancelha esquerda sofria pequenos tremores.

   Caminhou até uma cadeira próxima ao garrafão de vinho. Serviu mais um copinho de plástico descartável. Dançar não era o seu forte. Festas não eram o seu forte!
   Nandinho, que era o “DJ” da noite, chamou o Orelha para conversar. Tatu escutou Nandinho perguntando se ainda faltava muita gente pra chegar e se poderia soltar o É o tchan para dar uma animada. Orelha disse que já podia colocar o É o tchan. Estava na hora dessas gurias se soltarem. O É o tchan tinha um poder estranho. Era colocar e até as freiras tinham vontade de botar a mão no joelho, dar uma agachadinha, mexer gostoso balançando a bundinha.
   Tatu observava as gurias dançarem, pensava o quanto ele parecia invisível aos olhos femininos. Mas eis que no meio daquele monte bundas pré-adolescentes rebolando ele percebeu um olhar. Um olhar dirigido à ele. Deu uma conferida ao redor para ver se a guria não estava olhando para ninguém mais atrás. Não havia ninguém e ela não era vesga. Aquele olhar era sim para ele. Sentiu que crescia na briga outra vez. Sim ele estava de volta ao jogo.
   Do outro lado da festa quem olhava para Tatu era a Robertinha. Ela não era o que os guris chamavam de linda, mas estava valendo. E era, talvez, a sua última chance na noite. Ia encarar.
   Estava disposto a vencer o seu medo. Ele sentia uma coragem inédita. Uma auto-confiança jamais experimentada. Tomou mais um copo de coragem, colocou um Halls na boca e foi... meio cambaleando, meio sendo empurrado pelas bundas bailantes... mas foi. Foi direto até a Robertinha e perguntou:

   - Posso falar contigo ali do outro lado?

   A música estava muito alta e ela perguntou:

   - Quêêê?

   Isso tirou uns trinta por cento da coragem do Tatu. Repetir a pergunta não estava nos seus planos. Na verdade nada daquilo estava nos seus planos. Mas já que estava ali, não poderia desistir. Mudou de atitude:

   - Vem comigo! – gritou enquanto puxava a magricela pela mão.

   Foram para o lado da casa, onde havia uma área de serviço com uma estante de matérias de limpeza e um canto escuro, tranquilo. Tatu foi carregando ela para aquele canto e pensando:

   - E agora, o que eu falo para ela? Que vergonha. Estão todos me olhando. E se ela me disser não? E se ela ficar brava? E se ela me bater?! Ai meu Deus!

   Mas foi mais fácil do que ele pensava. Mal chegaram ao cantinho reservado e a guria já estava agarrada no pescoço dele e se aproximando com a boca aberta. Pronto. Fechou os olhos e aproveitou o momento. Que maravilha. Seu primeiro beijo em festa.

   Um dos amigos se aproximou e viu os dois abraçadinhos. Voltou correndo para a galera espalhou a noticia. Todos iam dar uma espiada e isso enchia o Tatu de orgulho. Estava gostando dessa sensação. Sentia-se poderoso, bonito, grande.

   Mas a noite não iria ser assim tão simples para ele. No meio de um dos tantos beijos que trocava com a Robertinha sentiu alguém se aproximando. Parou de beijar com o susto. Tinha medo de algum adulto aparecer. Quem se aproximava era um colega de escola chamado Alex.

   Tatu perguntou:

   - Qualé, Alex?

   Alex respondeu:

  - Nada não Tatu, só me dá licença que eu quero falar em particular com a Robertinha – pegou a guria pela mão e levou para o outro lado, longe dos olhos de Tatu.

   Tatu ficou parado, escorado na parede, no escuro. Ficou esperando a sua ficante por alguns minutos até que outro amigo passou por ali e debochou dele:

   - Bah, Tatu! Perdesse a guria pro Alex!

   Tatu ficou um pouco confuso:

   - Que papo é esse, Pelotas? – na verdade o nome dele era Paulo, mas a galera chamava ele pelo nome de sua cidade natal.

   - Ué, tu não visse os dois ficando?

   - Não.
  
   - Vem cá, eu te mostro, boca aberta.

   Caminharam um pouco e lá estava a Robertinha, agarrada no pescoço do Alex. O guri olhou para ele com cara de vencedor. Isso incomodou bastante ao Tatu, mas não era a sua namorada, e além do mais, já havia conseguido o que queria. Voltou tranquilo para a mesa do DJ e sentou triunfante.
   Mas algo não estava bem. Aqueles não eram os olhares que ele esperava. Os amigos não estavam fazendo festa para ele. Não demorou muito começaram a cobrar:

   - Tu não vai fazer nada? 
   - Vai lá e dá o troco! 
   - O cara roubou a tua mina, Tatu!

   Tatu não conseguia ficar irritado com isso. Mas os argumentos da galera eram fortes:

   - Porra, Tatu! O cara nem te respeitou, foi lá e tomou a mina de assalto.

   Ele não estava dando a mínima para essa guria. Mas o orgulho era mais forte. Não poderia aceitar tamanho desaforo. Pediu mais um copo de ousadia e partiu em direção ao casal. Ia para acabar com isso, ele tomaria a "sua garota" de volta. Enquanto caminhava na sua cabeça tocava a introdução do tema de Pulp Fiction, Tempos de violência. Caminhou com passos rápidos e quase decididos. Cutucou o ombro do Alex e disparou:

   - Com licença – pegou a Robertinha pela mão e voltou para o seu canto escuro atrás da estante de produtos de limpeza. Alex não teve reação. E o Tatu foi tão firme que nem a Robertinha teve como resistir. Na verdade ela chegou a dar um sorrisinho para o Alex.

   Tatu desfilou triunfante diante de sua galera. Ele havia vencido o duelo. Ela enfim havia escolhido quem era melhor. E o melhor era ele! Beijava a Robertinha com ainda mais vontade. Aquela menina feia e sem graça já não era prêmio de consolação. Ela era o troféu de sua batalha. Batalha contra o Alex e, principalmente, contra a sua timidez.
   Beijava e comemorava. Beijava e adquiria mais carinho pela sua ficante. Valeu a pena essa disputa.
   Mas de repente ele percebeu mais uma vez a galera se movimentando de maneira estranha. E logo se formou um pelotão indo em sua direção. Na frente desse pelotão vinha Alex. Ele vinha com cara de batedor de pênalti. Tatu não podia acreditar, ele queria a revanche. Acompanhou todo o deslocamento de seu rival e em segundo plano a horda de curiosos de olho nos acontecimentos. Tatu agarrou firme a cintura da Robertinha, que por sua vez, agarrada em seu pescoço, olhou dentro dos olhos dele, deu um sorrisinho e uma piscadela. Alex chegou e mais uma vez pediu licença. Tatu estava confiante que ela diria não. Olhou para ela com cara de ponto de interrogação. Dois segundos passaram até que ele sentiu ela soltando o seu pescoço lentamente. O olhar de vencedor que o Tatu ostentava agora se teletransportou para a cara do Alex. Robertinha foi se soltando dele enquanto olhava dentro de seus olhos. Tatu não esperava essa. Sentiu vontade de implorar para que ela ficasse com ele. Queria amarrar ela pela cintura. Mas não teve forças para segura-la. A Robertinha fugiu mais uma vez. Estava aproveitando esse momento de “objeto de desejo” que estava vivendo.
   Tatu não pode aguentar o golpe. Ficou triste, mas por outro lado, não iria ficar a noite toda nesse leilão absurdo por essa guria feia. Largou de mão. Voltou para a galera e deu um tempo por ali. Ninguém foi lá colocar pilha nele. Todos perceberam que a guria estava de palhaçada e que passaria a noite assim se os meninos assim quisessem.
   Sabia que tinha feito tudo que a galera esperava dele. Não tinha decepcionado ninguém. Estava quase contente, mas sentia uma espécie estranha de falta de ar. Uma coceirinha de frustração lá no fundo. Não entendia o porque disso.
   Não demorou muito e a mãe do Tatu estava no portão perguntando por ele. Tatu se despediu dos amigos e foi embora com a mãe. Ela ia xingando ele pela rua. Estava muito irritada porque estava com cheiro de vinho e pelo adiantado da hora. Tatu  foi em silêncio o caminho todo. Chegou em casa, foi direto para o quarto, tirou o sapato e se atirou na cama.
   Naquela noite Tatu chorou copiosamente em seu travesseiro enquanto se perguntava:

   - O que eu fiz de errado? Porque ela não quis ficar só comigo?

  E entre um soluço e outro balbuciava do fundo de seu coração infantil:

  - Eu te amo, Robertinha. Eu vou te conquistar, minha princesinha linda.

   As coisas ainda eram assim nos anos noventa.

Isaque Santos